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nem todos saberiam nada.
No importa, iam cheios de si. Paulo era o mais entusiasta e convicto. Aos outros valia só a
mocidade, que um programa, mas o filho de Santos tinha frescas todas as idias do novo
regmen, e possua ainda outras que no via aceitar; bater-se-ia por elas. Trazia at o desejo de
achar algum na rua, que soltasse um grito, j agora sedicioso, para lhe quebrar a cabea com
a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. No deu por falta dela; se desse,
bastavam-lhe os braos e as mos.
Props cantarem a Marselhesa; os outros no quiseram ir to longe, no por medo, seno de
cansados. Paulo, que resistia mais que eles fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora.
Vamos esper-la do alto de um morro, ou da Praia do Flamengo; teremos tempo de
dormir amanh.
Eu no posso, disse um.
Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era perto de duas horas
Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o ltimo recolhido foi sozinho para
Botafogo.
Quando entrou, deu com a me que esperava por ele, inquieta e arrependida de o haver
deixado sair. Paulo no achou desculpa e censurou a me por no dormir, espera dele.
Natividade confessou que no teria sono, antes de o saber em casa so e salvo. Falavam baixo
e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se.
Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado no lhe contes nem lhe perguntes
nada; dorme, e amanh saberemos tudo e o mais que se passar esta noite.
Paulo entrou no quarto p ante p. Era ainda aquele vasto quarto em que os dous gmeos
brigaram por causa de duas velhas gravuras. Robespierre e Lus XVI. Agora, havia mais que
os retratos, uma revoluo de poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho da
me, Paulo no quis saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que no. Efetivamente, no.
Pedro viu as cautelas de Paulo, e cumpriu tambm os conselhos da me; fingiu que no via
nada. At a os conselhos; mas um pouco de glória fez com que Paulo cantarolasse entre os
dentes, baixinho, para si, a primeira estrofe da Marselhesa que os amigos tinham recusado
fora:
Allons, enfants de la patrie,
Le jour de gloire est arrzv!
Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a inteno do outro era afligi-
lo. No era, mas podia ser. Vacilou entre a rplica e o silncio, at que uma idia fantstica
lhe atravessou o crebro, cantarolar, tambm baixinho, a segunda parte da estrofe: "Entendez-
vous dans vos campagnes...", que alude s tropas estrangeiras, mas desviada do natural
sentido histórico, para restringila s tropas nacionais. Era um desforo vago, a idia passou
depressa. Pedro contentou-se de simular a indiferena suprema do sono. Paulo no acabou a
estrofe; despiu-se agitado, sem tirar o pensamento da vitória dos seus sonhos polticos. No se
meteu logo na cama; foi primeiro do irmo, a ver se dormia. Pedro respirava to
naturalmente, como se no perdera nada. Teve mpeto de acord-lo, bradar-lhe que perdera
tudo, se alguma cousa era a instituio derribada. Recuou a tempo e foi meter-se entre os
lenóis.
Nenhum dormia. Enquanto o sono no chegava, iam pensando nos acontecimentos do dia.
ambos espantados de como foram fceis e rpidos. Depois cogitavam no dia seguinte e nos
efeitos lteriores. No admira que no chegassem mesma concluso.
Como diabo que eles fizeram isto, sem que ningum desse pela cousa? refletia Paulo.
Podia ter sido mais turbulento. Conspirao houve, decerto, mas uma barricada no faria mal.
Seja como for, venceu-se a campanha. O que preciso no deixar esfriar o ferro, bat-lo
sempre, e renov-lo. Deodoro uma bela figura. Dizem que a entrada do marechal no quartel,
e a sada, puxando os batalhes, foram esplndidas. Talvez fceis demais; que o regmen
estava podre e caiu por si...
Enquanto a cabea de Paulo ia formulando essas idias, a de Pedro ia pensando o contrrio;
chamava o movimento um crime.
Um crime e um disparate, alm de ingratido; o imperador devia ter pegado os
principais cabeas e mand-los executar. Infelizmente, as tropas iam com eles. Mas nem tudo
acabou. Isto fogo de palha; daqui a pouco est apagado, e o que antes era torna a ser. Eu
acharei duzentos rapazes bons e prontos, e desfaremos esta caranguejola. A aparncia que
d um ar de solidez, mas isto nada. Ho de ver que o imperador no sai daqui, e, ainda que
no queira, h de governar; ou governar a filha, e, na falta dela, o neto. Tambm ele ficou
menino e governou. Amanh tempo; por ora tudo so flores. H ainda um punhado de
homens...
A reticncia final dos discursos de ambos quer dizer que as idias se iam tornando esgaradas,
nevoentas e repetidas, at que se perderam e eles dormiram. Durante o sono cessou a
revoluo e a contra-revoluo, no houve monarquia nem repblica, D. Pedro II nem
Marechal Deodoro, nada que cheirasse a poltica. Um e outro sonharam com a bela enseada
de Botafogo, um cu claro, uma tarde clara e uma só pessoa: Flora.
CAPTULO LXVIII / DE MANH!
Floeta abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se to depressa que eles mal puderam ver a barra do
vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. Olharam um para o outro, sem rancor
aparente. O receio de um e a esperana de outro deram trguas. Correram aos jornais. Paulo,
meio tonto, temia alguma traio sobre a madrugada. Pedro tinha uma idia vaga de
restaurao, e contava ler nas folhas um decreto imperial de anistia. Nem traio nem decreto.
A esperana e o receio fugiram deste mundo.
CAPTULO LXIX / AO PIANO
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